O PRAZER DE VIVER NUMA BOA
- Rodrigo Ramos
- 5 de out. de 2021
- 7 min de leitura

I
O ideal seria que o ser humano viajasse menos, mas daí não ia ter muita graça. Bom de verdade seria a natureza se ver livre da gente, ou (pelo menos e principalmente) do turista. Inclusive turista se compara a uma das piores coisas que existem: o cliente. Repare como a pessoa que paga um dinheiro por alguma coisa, acha que tem o poder do comando, fica um pouco arrogante. A gente olha praquilo e é um sujeito sei lá, que tem uma indústria de sabonete, pagando pela viagem com a amante para a Punta Cana, não precisa julgar ele moralmente, mas pensa no Caribe, vai ver a situação das pessoas que moram lá.
Caribe é o mesmo lugar de onde vem Frantz Fanon, um martinicano que possuía um olhar diferenciado sobre a colonização, também era um revolucionário, lutou na segunda guerra, médico, psiquiatra, coisa assim, bom saber disso, porque dá uma ideia de por onde a gente começa a falar de meio ambiente, resolvendo o problema das pessoas que vivem nele. O problema muitas vezes está dentro da cabeça.
Nossa saúde mental pós pandemia não está lá essas coisas, muito difícil até pra jornalista, que sob ataque, ou mentindo muito e fazendo uma coisa que não tem nada a ver com jornalismo, tem que ficar lá todo dia noticiando tragédia, porque o pseudojornalista, esse já é um caso perdido de loucura. Bem, imagine para um turismólogo. Você nem sabe o que é isso, não é? Imagine um músico, agora imagine uma categoria abaixo disso, depois disso vem o pessoal do marketing, filósofos, coisas sem a menor utilidade econômica dentro de uma pandemia, porque o que vende é caixão para o velório, coroa de flores também. Olha aí a ecologia finalmente chegou nesse texto.
As pessoas gostam de jardins floridos, confesse, é bonito, no turismo tem muito disso, lugares paradisíacos. Agora pensa bem, a coisa que aumentou a velocidade dessa pandemia foi o turismo, foi a indústria do turismo. Imagine o tanto de gente que saí de casa e vai pra algum lugar pra lazer, pra trabalho, pra fazer qualquer coisa saí de perto de onde mora, saí do ABC, ou saí da Zona Leste e vai pra outro lugar dormir e nesse outro lugar a pessoa age como um idiota, diferente do que faria no próprio quintal, enfim, esse é o turista. A indústria vai lá e massageia o ego dele, pede pra ele voltar, abraça todo tipo de comportamento, porque o importante é vender, é o dinheiro dessa gente que importa, em dólar se possível - aceitamos todas as bandeiras, com certeza - diz o atendente da Accor. E o vírus se espalha.
II
Olha, mesmo em casa os nossos hábitos também não são lá essas coisas, a gente senta na frente de uma tela e consome, uma overdose de tela, daí chega plástico aos montes pra dentro do doce lar, muito lixo: orgânico, inorgânico, isopor, cotonete, bateria, tv quebrada. O que fazer do lixo? Reciclar! Pelo menos levar para o ecoponto! Esse seria o ideal. Mas tem uns tipos que não separam nada, lidam com o lixo como se não fosse é nada, o lixo é um estranho, o lixo não sairia de casa não fosse alguém tirando. Esses tipos ficam lá com a cara de derrota olhando para as paredes, sonhando acordado, mas é aí e em muitas vezes que se veem com os bolsos vazios, viram força de trabalho barata, topam qualquer parada, pensam em mudar de vida - Temos aí a psicografia do nosso novo herói, um perfil daqui, dessas linhas.
Lá vai nosso herói, diante de um resort novinho, daqueles pelo interior, distante da capital, todo autossustentável, nem parecia possível, mas há oportunidade de emprego e é como garçom do restaurante de lá, ou quem sabe recepcionista? Segurança também, nosso herói é grande. Chega no resort e constata, é mesmo o paraíso, água potável por todos os lados, tratamento de esgoto, horta pra alimentação, assim de pegar no cacho e comer, pequenos animais andando livremente, um pavão passeando pelos espaços, esses abastecidos por energia solar, perfeito! Pessoas educadas e letradas pra onde quer que se olhe, recreação para as crianças, espaço pet, arquitetura artística, pessoas fazendo ioga. Olhou ali e aparece alguém muito fino e esticado, estudado, aventurado, domínio de vários idiomas, são pessoas lindas, pessoas ricas, é claro! O nosso perfil sabe lidar com tudo isso, a mãe sacrificara boa parte dos recursos com o pagamento de educação particular, nosso herói então está contratado. Mas ele nunca vai aproveitar algo assim, só o preço da diária ali será sempre inacessível para o nosso protagonista, que vai ganhar pouco pelo prazer de apreciar a paisagem e nunca terá tempo para viajar, já que vai trabalhar em todos os feriados.
Desenhando pra você que não entendeu - O prazer de viver numa boa - Devia ser esse o slogan do turismo no Brasil e em baixo dele uma tela com senhores de escravos e seus descendentes vivendo numa boa, com negrinhos acorrentados lhes servindo café, negrinhas seminuas lhes escovando as costas e corpos de nativos tupinambás mortos, todos em volta. Brasil ecologicamente sincero.
Enfim, esse negócio de ecoturismo, sustentabilidade, resort verde, é bom e vende mesmo, convence mais que sinceridade, poderia até ser melhor no Brasil não fosse o descalabro político, e a pandemia. Mas a indústria turística continua sendo um monstro sem controle, um sistema. Realize o tamanho da tragédia que se abalou na vida dessas pessoas que viviam do turismo ecológico no mundo, alguns dizem sobre a retomada, mas a queda foi gigante e nós precisamos refletir e pensar um pouco mais, aprender, veja que em 2002 a conversa sobre turismo era essa:
Na Amazônia do Equador, por exemplo, o povo Huaorani implantou um projeto comunitário que distribui a arrecadação turística toda noite entre as famílias e proporciona o dobro da renda que aufeririam trabalhando para uma empresa petrolífera. (MASTNY, 2002, p.134)
Pessoal sempre fala sobre essa autonomia autóctone, não tem como discordar, mas ainda bem que os Huaorani são do Equador, porque se fossem pessoas do Brasil certamente estariam no meio da fogueira que virou esse lugar, perceberiam que jamais a indústria do turismo sequer pensou na população pobre, assim como a petrolífera, esse nunca foi o foco do negócio e que é melhor acabar com essa coisa de turismo e, ainda, não permitir que o homem branco sequer atravesse a mata. No entanto se as comunidades dependem dessa indústria, o que sobrou pra elas nessa pandemia. Miséria?
Todo mundo sabe o que é miséria, é falta de recurso básico. Isso aí não traz felicidade mesmo, pode ser o que for, homem, ou mulher da floresta, cacique, pajé, quando não tem nem saneamento básico é porque a coisa é tensa. Mas se você for pensar no indígena isolado, que não sabe nem o que é internet, saiba, é melhor deixar esse povo na deles mesmo, não vá fazer nada por lá, não tente evangelizar eles, não tente dar presentes a eles, não pise em suas terras, não faça o turismo por ali, não garimpe por lá, ouro é futuro digno para as crianças, deixe-os em paz, essa é uma recomendação sincera.
E se você não faz parte da solução, você faz parte do problema. O sistema te condena, sua alienação é tamanha que vai ser preciso muita terapia. Você é o alvo de toda essa ganância, sua maior liberdade é a escolha de um produto numa gôndola qualquer, agora elas são virtuais também, pague os impostos, corra atrás desse dinheiro, você não tem saída. Ninguém tem saída, acontece que se for possível, não se esqueça dos mais pobres.
III
Voltemos ao nosso herói, agora já se importando mais com a vida, entendendo a dificuldade de comer três refeições ao dia no Brasil, ele sabe que se largar o eco resort vai ser um problema muito grande para as finanças que planeja manter, de repente ele pode ser promovido e virar um gerente, vai poder torturar os seus subalternos psicologicamente assim como ele é torturado, apreciar alguns privilégios do cargo, afinal cargo sem nenhum privilégio não adianta, é lucro ou privilégio, a busca é inquestionável. Enfim, de herói a antagonista, esse mesmo cara vai se esforçar assiduamente para se adaptar ao ofício, o destino bem sucedido desse cidadão pode acabar com o planeta, turismo é um perigo através dos gases tóxicos que saem dos aviões com a queima de querosene, turismo pode contribuir para a manutenção da miséria e da indiferença, pode destruir a própria natureza que está na vitrine à venda, pode um monte de coisa ruim, mas isso não faz a menor diferença, para nosso herói é só o trabalho dele e o jeito dele no meio disso. Talvez se ele for um cliente melhor, um turista melhor, talvez se ele for um ser humano melhor.
Pois é, quem sabe se nossas demandas fossem aprimoradas, não houvesse alguma esperança? Talvez numa corrente de sustentabilidade, algo geral e comum, energia vinda da nossa natureza coletiva, algo do bem que nos fizesse não aceitar mais tudo que vivemos de desgraçado na sociedade, que não permitíssemos nenhum retrocesso, nenhuma injustiça. Óbvio que isso requereria atenção especial ao núcleo da neurose, no caso do indivíduo: o complexo de édipo, mas no caso da sociedade ocidental e principalmente brasileira: a cultura escravocrata e o tráfico humano. Ou em outras palavras, o capitalismo. Poderíamos ao menos depositar um olhar rearranjado para isso, mais solidário, mais abrangente, envolvendo distribuição de riquezas, numa certa radicalização da igualdade, afinal, por que o Brasil é tão desigual? Por que nos acostumamos com isso?
Talvez o leitor, a essa altura, questione sobre as liberdades, por haver muita preocupação e ganância dentro dos nossos corações, um sentimento que nos faz crer que somos especiais de verdade, pode ser que o leitor também sofra disso. Essa elaboração renderia outro texto, mas como forma de esboço elabore e veja que tudo aquilo que é livre se depara com a natureza, com o natural, porque liberdade supõem vida, ninguém reivindica liberdade aos asteroides, aos corpos celestes, livre é pra poder sorrir, liberdade é pra dentro da cabeça... Enfim, pense que se você entrar em mar aberto sabe que, a partir do momento que põem seu corpo dentro do oceano faz parte da cadeia alimentar, a natureza vai engolir você, ela não precisa de você vivo, ela se anseia, precisa da vida que ela mesmo produz, você só pode respeitá-la e preservar a própria espécie animal que você é.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FRANTZ, Fanon. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. - Salvador: EDUFBA, 2008/1952.
JAMIESON, Dale. Ética e meio ambiente: uma introdução. Tradução André Luiz de Alvarenga. São Paulo: SENAC, 2010.
MASTNY, L. Redirecionando o turismo internacional. In: FLAVIN, C. O estado do mundo. Especial RIO+10. Salvador: Universidade Livre da Mata Atlântica/UNESCO, 2002.



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